Adultos-criança
"Saiu, esta sexta-feira o disco "Canções De Roda, Lenga Lengas E Outras Que Tais". Conta com interpretações de Ana Bacalhau, Jorge Benvinda, Sérgio Godinho e Vitorino", ouvi ali pela hora do almoço na Antena 1.
Era um disco de canções infantis. Daquelas da nossa infância. Do "Ah Ah Ah Minha Machadinha" ao "Indo Eu, Indo Eu A Caminho de Viseu".
Pensei eu que isto não seria um espécie de "Xana Toc-Toc" ou "Panda e os Caricas" (com todo o respeito pelo seu trabalho). Não, isto é outra coisa! Isto tem de ser outra coisa! Fiz então o teste e lá vim eu a ouvir o disco no Spotify. Estrada fora! Numa das minhas viagens longas de fim de semana. Em modo normal porque este disco não é para se ouvir em random.
Dei por mim várias vezes a cantar (e com sentimento, diga-se!) aquelas músicas: ficam gravadas na nossa memória como se fosse um carimbo!
Mas há momentos em que os artistas param a música e, simplesmente, falam. E talvez seja esse o momento em que a minha longa viagem muda de assunto. Talvez não estivesse à espera de ouvir o Sérgio Godinho ou a Ana Bacalhau a contar histórias ou do Vitorino a relembrar a sua infância.
Por momentos, voltei a alguns momentos da infância onde me lembro de ver os miúdos do "lugar" a jogar à bola ou às escondidas.
Nas primeiras noites quentes de maio, quando as meninas eram uma descoberta recente para além das brincadeiras do costume (brincar aos médicos, às casinhas, merceeiros e compradoras), lá escolhíamos aquela a quem dar a mão para organizar a roda que tinha mais importância se tivesse muita gente. (...) Era assim que começava tudo! Naquelas noites mornas, com o tempo todo para brincar no largo de terra batida que parecia enorme mais pequeno e diferente e, entretanto, já foi calcetado.
- Vitorino
Ainda me lembro do "tacho livre a todos", do "em cima do piano está um copo de licor de que cor sem pensar" ou do "o aviãozinho atirou a bomba ao ar a que terra foi parar sem pensar"!
A leitura do Vitorino trouxe-me rapidamente à memória os vários jogos até ao terceiro ano, das lengalengas que, olhando à distância, não faziam sentido nenhum. Menos para nós: numa inocência perdida com o virar de ciclo, aquilo era o nosso mundo e éramos felizes, mesmo que os pais tudo fizessem para mudar a ordem natural das coisas.
"Não vão para a estrada! Olhem os carros!"
Frase repetida até à exaustão! Mesmo que a estrada estivesse deserta no domingo à tarde.
Depois, tudo desapareceu. Aos poucos. Como devem ser os ciclos. Os miúdos do "lugar" foram crescendo.
"Ó Mamã, por que é o Jorge e a Margarida não vêm brincar?", perguntei eu. Resposta pronta: "Porque eles têm de estudar para a escola!"
O "lugar" continua o mesmo: o sítio onde dávamos "tacho livre a todos" continua lá. O largo está "calcetado" mas continua lá! Há outras crianças no lugar e a estrada continua deserta ao domingo à tarde! Nada mudou mas tudo mudou ao mesmo tempo.
"Não vais lá para fora: olha que ainda vem um homem e leva-te!"
"Não vais lá para fora: olha que ainda cais!"
"Não vais lá para fora: olha que..."
Tantos "olha que" e tão poucos "não vais lá para fora sem mim!". Precisamos de crianças mas precisamos tanto de "adultos-criança" de vez em quando! E eu senti-me criança outra vez com este disco.